"A DENÚNCIA" - PARTE 6/6
O rapaz não queria acreditar. Se o pai não estivera no bar e se a PSP chegou a casa da princesa antes dele e não sabiam onde ele se encontrava, isso significava uma coisa. O pai sabia que o rapaz fizera queixa à polícia. Nervosamente, perguntou se foram procurar o seu pai a casa. O agente respondeu afirmativamente, adiantando que a mãe do rapaz os recebeu mas disse logo que ele não voltara desde que saíra. O rapaz perguntou como estava ela, ao que o agente disse que se notava que estava perturbada e até tinha o olho negro, pelo que o agente a fez prometer que ia seguir o exemplo do filho e que iria à esquadra fazer queixa do marido. Se não houvesse queixa, nada podiam fazer. Ela garantiu que iria seguir o conselho do agente e o exemplo do filho.
Mais aliviado, mas ainda com uma ponta de pânico, coxeou de volta a casa. Apesar de tudo, aquele era um bairro tranquilo e onde se sentia seguro, onde fizera alguns amigos e onde brincara muito. Mas não devia ter feito o desvio para a casa da princesa. Onde estaria o seu pai? Como reagira ele ao saber que fora denunciado? Temia o pior.
Vinte e poucos minutos depois avistou a sua casa, o seu Inferno na Terra. A maioria das pessoas vê o seu lar como um porto de abrigo, mas o rapaz via-o como uma penitenciária, em que ele e sua mãe eram os reclusos. Restava saber a duração da pena.
Bateu à porta de casa. Ninguém respondeu. Bateu novamente. Sentiu o cheiro a tabaco. Bateu com violência, pouco se importando que os vizinhos ouvissem. Não estava a gostar nada daquilo.
Berrou pelo nome da mãe, as lágrimas a formarem-se e a rolarem pelo rosto.
Ouviu um clique. A porta abriu.
A presença do seu pai já tinha sido denunciada pelo cheiro a tabaco. Vê-lo ali, bêbado e a fumar, não o surpreendeu minimamente. Queria saber da mãe.
- A mãe? Onde está?
- A puta da tua mãe teve o que merecia. Avisou a polícia do meu plano para hoje e lixou-nos a vida, a cabra. Nem pude ir ao bar hoje. Íamos fazer um bom dinheiro e ela fodeu tudo.
- A puta da tua mãe teve o que merecia. Avisou a polícia do meu plano para hoje e lixou-nos a vida, a cabra. Nem pude ir ao bar hoje. Íamos fazer um bom dinheiro e ela fodeu tudo.
- O que aconteceu? Onde está a mãe? - Perguntou, ignorando o bafo a álcool misturado com tabaco e a forma grotesca como falava.
O pai sorriu, o cigarro sempre no canto da boca.
- Já te disse, caralho. Teve o que merecia por me ter denunciado. Espero que tu aprendas a lição para não cometeres o mesmo erro que ela.
- Não foi ela que te denunciou, fui eu! - Gritou o rapaz, fora de si. - A mãe nunca te iria denunciar, ela continua a proteger-te apesar de tudo o que tu fazes e fizeste. Nem sabes a sorte que tens! Nunca percebi porque é que ela insiste em proteger-te...
Aflito, com o coração nas mãos, o miúdo passou pelo pai, surpreendido pelo que o filho dissera, e correu pelas divisões da casa.
O rapaz estava assustado até à medula. Algo que estava muito errado. Ao chegar ao quarto dos pais, perdeu a força nas pernas e caiu ao chão, de joelhos.
A sua mãe estava prostrada na cama. O seu corpo estava caído de barriga para cima, a cabeça a pender para o chão no limite da mesma. O seu rosto, invertido, estava manchado de sangue, que parecia ter escorrido pela gravidade para o chão. Pequenas gotas carmesim pingavam lentamente pelo topo da cabeça, formando uma pequena poça no chão. O seu olhar gelou o rapaz. Era um olhar vítreo, um olhar que já não via.
A culpa era sua. Sabendo da denúncia à polícia, o seu pai teria ficado mais furioso que nunca e teria regressado a casa, encontrando apenas a sua mãe. Teria batido com violência nela e, quando a polícia apareceu, ela tê-lo-ia protegido mentindo ao agente. Confiante de que não regressariam, o pai teria continuado a torturá-la com ainda mais vigor que o normal até acabar por a matar.
A sua mãe morrera. E a culpa era sua. Não por ter feito a queixa à polícia que desencadeara tudo aquilo, mas por ter demorado tanto a tomar aquela atitude. Se o tivesse feito mais cedo, bastaria outro dia que não aquele do assalto em que o pai estava mais alerta, e teria convencido a mãe a ir à esquadra e a pedir protecção. Mas não. Fizera-o naquele dia. E, como a mãe insistia em proteger o marido apesar de toda a pancada que sofrera ao longo da vida, possibilitara que ele tivesse todo o tempo do mundo para a massacrar além do limite humano. Se a mãe, também, tivesse tido a coragem de fazer queixa assim que o pai lhe tocou pela primeira vez, fosse há quanto tempo fosse, o pai nunca chegaria àquele ponto. O mal teria sido cortado pela raíz. Assim, foi crescendo e crescendo até se transformar em algo horrível e monstruoso. Bastava ter tido coragem mais cedo. Mas ela não era a única, infelizmente, que permitia ser abusada fisicamente pelo marido. Milhares de mulheres, e homens, eram maltratados em casa pelos cônjuges e nada faziam por vergonha ou por medo da retaliação. O rapaz, neste caso, tomara uma atitude demasiado tarde. Embora fosse a atitude certa. No entanto, o timing era essencial nestes casos.
O rapaz chorou, por fim. Chorou a perda da mãe e nem sentiu as novas chicotadas que o pai lhe lançava com ferocidade por ter finalmente assimilado que quem o denunciara fora o filho.
O rapaz não se importava. Nada mais importava. A sua mãe morrera. A Polícia, em breve, iria voltar a casa deles por causa da queixa que ele fizera umas horas antes. Mas nada importava, nem o facto de ter as costas em carne viva ao fim de uns minutos.
O rapaz já não queria saber se ele próprio morria ou se o pai iria pagar pelo que fizera. Nada interessava a partir daquele momento. Nada mais fazia sentido.
Tivesse feito a denúncia mais cedo e tudo seria diferente. A sua mãe ainda estaria viva, o seu pai estaria bem longe deles e ele estaria bem de saúde.
Assim, a sua mãe estava morta, o seu pai iria ser preso no dia a seguir e o rapaz…
O rapaz, deixou de o ser.
FIM.