by - 22 dezembro

Conto de Natal 2021

 

Com as mãos protegidas nos bolsos do casaco grosso, a mulher caminhava com uma sensação estranha dentro de si. Sentia uma necessidade de espairecer e, por isso, palmilhava as ruas de forma aleatória, metida nos seus pensamentos.

À sua volta, as ruas começaram a iluminar-se com a aproximação da noite. E que noite era aquela. Entre as luzes dos candeeiros destacavam-se outras luzes mais coloridas. Mais festivas.

Engoliu em seco. Como é que já era novamente Natal?

Por muito que as pessoas desvalorizassem esta época festiva, era impossível ignorarem e não se deixarem contagiar pelo espírito natalício. O frio, que tornava prazenteiro a ingestão de bebidas quentes e que nos levava a vestir roupas mais grossas e aconchegantes, era uma delícia. O cheiro a filhós, bolo rei, fatias douradas e todos os doces característicos do Natal davam sempre um aconchego que só uma tradição conseguia. A bondade que parecia sobressair neste período era incrível, bem como a vontade de juntar a família em torno de uma mesa farta, com gargalhadas a temperar a refeição e brincadeiras a intervalar cada prato. Os passeios em família, as fotos, os presentes. As luzes e as músicas de Natal que se escapuliam de cada estabelecimento e habitação e que compunham tão bem a quadra natalícia.

No entanto, era também uma altura em que mais se sentia a falta de certas pessoas. Pessoas que foram muito importantes e que desapareceram, que não estavam mais presentes. Os entes queridos que haviam falecido.

A mulher sentiu um aperto forte no coração perante a inundação de luzes e de espírito natalício que traziam consigo tantas e boas memórias, que nunca mais seriam repetidas. Seria por o Natal ser um evento mais familiar que sentia ainda mais a falta do seu falecido marido?

O homem com quem casara vinte e três anos antes falecera há quase cinco. Partira muito novo, com muitas promessas por cumprir e muitos feitos por concretizar. Muitos momentos por assistir. Demasiados carinhos por dar e por receber.

Cerrou as mãos em punho, sentindo falta da mão dele entrelaçada na sua.

A mulher ainda não chegara aos cinquenta anos e já era viúva. A vida, por vezes, podia ser muito injusta. Como pudera tirar deste mundo um homem incrível como o que casara com ela? Um homem sempre animado, que não fazia mal a ninguém, que tinha um espírito bondoso impressionante e que jamais guardava rancores, fosse de quem fosse. Um homem que a tornara numa mulher bem melhor e mais completa, mais apta para enfrentar as vicissitudes da vida. Um homem que com ela tivera três filhas que já eram mulheres e que, em breve, sairiam de casa e a deixariam sozinha.

Piscou os olhos para conter uma lágrima. Não era nada fácil fazer aquela caminhada sozinha. Talvez nunca mais o fosse. Mas era algo que precisava de fazer. Em memória do marido. O seu melhor amigo, que desaparecera injustamente.

Era impressionante o quanto o marido adorava ver as luzes de Natal e comentar os enfeites que cada casa ou loja se orgulhava de colocar nas suas fachadas. Havia o constante Pai Natal a subir a escada, as luzes intermitentes espalhadas ao longo da parede e das janelas, ou até os dizeres escritos a branco a imitar a neve. Aquela era uma tradição que eles tinham: palmilhar ruas e mais ruas para se envolverem no espírito natalício, sempre de mãos dadas ou agarrados um ao outro, enquanto olhavam, maravilhados, para as decorações.

Agora, em sua homenagem, aquela mulher estava a fazer o mesmo, mas sozinha. Como fizera nos últimos anos. Por diversas vezes, fora vista a chorar enquanto apreciava alguns adereços. Ninguém percebia o que se passava, e alguns até a achavam estranha, mas a verdade é que ela via o marido em todo o lado. Sentia-o mais presente naquela altura do que no resto do ano. Via-o em cada luz, em cada enfeite vermelho, verde, dourado ou prateado, em cada Pai Natal, em cada árvore de Natal, em cada presépio, em cada peça de roupa natalícia, em cada café que servisse chocolate quente.

Ele estava em todo lado.

E não estava em lado nenhum.

Ela continuou a caminhar.

Nas últimas semanas, as filhas perguntaram-lhe várias vezes que prenda queria ela para o Natal. Algo que ela precisasse, como roupa, calçado, algum livro, algo para o escritório. Mas a mulher não soubera responder. Pelo menos, não o conseguia fazer com sinceridade. Acabara por dizer que precisava de umas calças novas, um casaco grosso e queria muito um livro de uma autora que adorava.

No entanto, se tivesse respondido com sinceridade teria dito que gostava de ter mais um dia com o seu marido. Era só isso que ela queria. Era o seu maior desejo: apenas um dia com ele, para o ver novamente, para falar, para lhe contar como foram os últimos cinco anos. As saudades horríveis que ela sentia todos os dias, as conquistas escolares e desportivas das filhas, as chatices com os namoricos e com a guerra de autoridades entre elas, com ela a impor regras e elas a quebrarem-nas. Mas como, no final do dia, estavam sempre bem e sabiam o quanto se amavam.

Queria mais um dia para lhe tocar, para sentir a pele sempre quente a envolvê-la, para o beijar e sentir a barba a roçar na sua face, para ver o sorriso lindo que amolecia o seu coração. Queria mostrar-lhe como as filhas cresceram e estavam lindas. Como ela se sentia orgulhosa delas. Gostaria, também, que ele lhe garantisse que ela estava a fazer um bom trabalho a educá-las sozinha, apesar do medo que sentira quando ficara viúva com três filhas na adolescência. Ficara apavorada depois de perceber as consequências da morte do marido. Três raparigas em plena adolescência precisavam de si. Mais do que nunca. Como ela tivera medo de falhar… Fora terrível.

Mas desenvencilhara-se. Com a ajuda da família, conseguira não se perder na mágoa nem permitir que as filhas se perdessem para o mundo. Segurou-as o melhor que pôde e seguiram em frente. Despedaçadas e quebradas, mas não pararam de avançar.

Aconteceu tanta coisa desde que partiste — pensou ela, soturna e melancólica, contrastando com a alegria das iluminações que observava. — As nossas filhotas foram para a faculdade com bastante mérito e estão a ter muito sucesso. A mais velha já terminou o curso e arranjou logo emprego. As outras duas já têm oportunidades de emprego debaixo de olho. Estou muito feliz pelas nossas meninas. Estão tão crescidas… Ainda agora eram umas pirralhas que faziam a nossa vida num inferno, e agora olho para elas e já são umas mulheres. Pena não estares aqui para presenciar estes momentos tão importantes para nós… Só espero não te ter desiludido, amor. Garanto-te que elas nunca te irão esquecer e irei garantir que irás estar sempre presente nas nossas vidas, seja de que maneira for. Elas têm imensas saudades tuas, sabias? Eu também, claro. É sufocante encarar o resto da minha vida sem ti ao meu lado. Mas imagino que tenhas ainda mais saudades nossas, onde quer que estejas. Nós ainda nos temos uns aos outros, mas tu… — Tentou não chorar de forma audível. Um casal passava por si a passear um cão e estavam a olhar de lado, desconfiados. — Prometo que os nossos netinhos saberão o homem forte, determinado e carinhoso que criou as mães deles. Saberão tanto de ti como se te tivessem conhecido. Prometo, meu amor. Os nossos netos ficarão orgulhosos quando souberem o avô que infelizmente não puderam conhecer. É tão injusto não estares aqui, connosco… Ainda hoje sinto tanta raiva pela injustiça da vida. Não é justo! Percebes? Não é justo tu teres morrido quando há imensas pessoas más e horríveis que continuam por cá… Não é justo, bolas!

Passou a manga do casaco pelo rosto molhado de lágrimas.

Essa será, talvez, a maior mágoa que tenho. Só de pensar que os nossos netos vão nascer e crescer sem o avô materno, fico de rastos. Logo tu que querias tanto ser avô. Tu, que ansiavas que as miúdas tivessem filhos para voltares a brincar com os bebés como fizeste com elas. Meu deus, tu serias o avô mais babado de sempre. Tenho a certeza!

Sem dar por ela, sem se recordar de como chegara ali, parou de caminhar. Encontrava-se à porta da sua moradia. Fora a primeira e única casa que eles tiverem desde que se casaram. Agora, estava prestes a ser habitada apenas por ela, já que as filhas, mais ano menos ano, iriam seguir os seus caminhos.

Ficou a apreciar a fachada da casa, extensamente decorada e iluminada pelas filhas, que insistiam em manter viva a memória do pai e a sua paixão tão forte pelo Natal.

As memórias que esta casa guarda… A nossa vida como casados começou aqui. Ainda me lembro das discussões parvas que tivemos quando nos estávamos a adaptar à vida em conjunto. Ou era porque tu deixavas as meias espalhadas por todo lado, ou porque eu metia a água a escaldar quando tomávamos banho… Mas fomos tão felizes, não fomos? As saudades apertam bem forte quando penso em ti desta forma tão vívida. Queria tanto voltar atrás no tempo e fazer tudo de novo, viver tudo de novo contigo. Era o que mais queria neste mundo…

Umas gargalhadas bem fortes fizeram-se ouvir do interior da moradia.

Tenho muito orgulho em nós, sabias? Foste a melhor coisa que me podia ter acontecido. Sem ti, nunca saberia o verdadeiro significado de felicidade. Nem de amor. Obrigado por isso. De coração.

Conseguia ouvir conversas animadas dentro de casa, que estava recheada com as filhas, os pais, irmãos e sobrinhos. A sua família estava ali toda para celebrar o Natal.

Só faltas tu, amor. Só faltas tu para o Natal ser perfeito. Mas nunca mais será perfeito, não é? Haverá sempre aquela pequena nuvem cinzenta a pairar no horizonte. Isso nunca mudará.

Ia tocar à campainha, mas deixou o dedo pairar a um centímetro do botão.

A verdade era que, independentemente da desgraça que se abatesse sobre as nossas vidas, o mundo continuava a girar e a vida continuava. Sempre.

Após a morte do marido, essa indiferença da vida para com o que lhe acontecera enchera-a de raiva. Como podiam as pessoas continuarem as suas vidas tão felizes, quando uma desgraça daquele tamanho se abatera sobre si? Fora uma luta longa e dura até perceber que a vida nunca parava, acontecesse o que acontecesse. Não era nada contra ela. O sentido da vida era sempre para a frente. Sempre.

Independentemente se o seu marido estava vivo ou morto.

Ali, dentro de casa, estava a prova disso mesmo. Ela estava desfeita por dentro, tal como a sua família, mas eles estavam animados e felizes. E essa felicidade não significava desrespeito pela memória dele; antes pelo contrário. Ela tinha a certeza que o marido quereria que a família continuasse a ser unida e feliz como sempre e que não deixassem de aproveitar a vida. Isso só tornaria tudo pior. Fora com esse pensamento que conseguira ultrapassar a morte dele.

— Vais ficar aqui fora até congelares, mãe?

Sobressaltada, virou-se para trás e viu a filha mais nova, que segurava umas pinhas que devia ter ido buscar num terreno ali perto para colocar na lareira.

Aqueles olhos meigos eram os do pai.

— Pensava que já estavas em casa. Eu estava só a…

— A pensar no pai?

A mulher sentiu-se embargar de emoção e, não conseguindo responder, abriu os braços para receber a filha. Abraçaram-se com força e choraram juntas até descarregarem a melancolia que as preenchia naquela altura do ano. Era normal. Não significava tristeza, mas antes saudades. Saudades de uma das pessoas mais importantes das suas vidas que nunca mais puderam ver.

— Espera um pouco. Este é o momento ideal para te dar a minha prenda.

A mulher assentiu, não conseguindo ainda falar por causa da emoção, que lhe deixara um nó na garganta. Entrou no pátio de casa e fechou o portão atrás de si, na expectativa. A filha surgiu novamente e fechou a porta de casa. Queria privacidade. Na mão, tinha um embrulho retangular e espesso. Como se fosse um livro. Aproximou-se da mãe e estendeu-lhe o presente.

— Abre.

Antes de abrir, viu que a filha parecia nervosa. Isso só a deixou ainda mais receosa. Rasgou o papel de embrulho e as lágrimas surgiram instantaneamente.

Nas suas mãos, a mulher tinha um álbum de fotografia, muito semelhante aos dos casamentos. Era grande e cada página era bem espessa. Na capa estava uma foto do casamento deles. Folha a folha, fotografias das suas vidas em conjunto desfilaram à frente dos olhos, de forma cronológica. O casamento, a primeira noite naquela casa, a celebração da primeira gravidez, todo o percurso até terem a filha mais velha, e por aí fora. Cada momento importante estava representado naquele álbum. Ao ver a última foto percebeu ainda mais o quão jovem o marido era quando morreu, cinco anos antes. No dia em que souberam da doença que ele tinha, tinham ido passear com as filhas a um jardim muito bonito a meia hora de caminho de casa. A foto mostrava-os aos cinco abraçados, a olhar para a câmara com uma felicidade tão grande, uma tranquilidade tão profunda e um bem-estar tão genuíno, que fez a mulher fechar o álbum e apertá-lo no peito, vertendo lágrimas de saudades e de raiva. Eles eram tão felizes, eram a família perfeita, mesmo com todos os defeitos. Mas a vida tratara de arruinar o que de melhor eles tinham.

— Obrigado, filhota — conseguiu ela dizer, no meio dos soluços do choro.

A filha, também a chorar por ver a mãe naquele estado, abraçou-a novamente. Com força. Apertaram-se como se nunca mais se fossem largar.

Pouco depois, o som da animação da casa fê-las perceber que tinham de regressar. Mais calmas, quebraram o abraço e ela agradeceu novamente à filha pela prenda. Tinha sido a melhor de sempre. A filha limpou o rosto e sorriu.

A mulher olhou para a filha e viu o marido nos seus olhos. Ele podia não estar ali com eles, mas estava presente. Sempre. Em cada uma delas. Ele fazia parte delas e enquanto elas fossem vivas e se recordassem dele, ele viveria.

Ele vivia nelas.

Cabia-lhes a missão de honrarem a sua memória sendo felizes.

E a celebrarem o Natal.

Mãe e filha entraram em casa rumo a mais um Natal sem aquele grande homem ao lado delas. Mas seria um Natal feliz, cheio de amor e carinho, como se desejava. Bastava ter a memória do falecido bem quentinha e presente dentro do coração. Dessa forma, ele seria eterno. E era como se estivesse ali mesmo ao lado delas a partilhar a alegria e magia do Natal.

 

No fundo, esse é o grande poder do Natal, o de nos fazer sentir a presença bem perto de nós dos nossos entes queridos que já faleceram. Temos de ser felizes por eles, pela sua memória e por serem eles os primeiros a quererem que sejamos felizes para sempre, com ou sem eles.

Portanto, mantenham os vossos falecidos bem dentro do coração enquanto celebramos mais uma quadra natalícia junto dos que mais amamos no mundo.

FELIZ NATAL!

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2 comentários

  1. Mais um lindo conto de Natal! Dos 4 foi o que me custou mais a ler pois as lágrimas teimavam em cair e turvar-me a vista. Não podia deixar de pensar nas duas pessoas mais importantes que já perdi… os meus pais! O meu pai também tinha o sonho de ser avô. Descobri a uma quinta feira que estava grávida e apesar de falar com ele ao telefone não lhe contei pois sabendo que era o seu sonho queria ver a sua reacção e deixei para lhe contar no almoço familiar de domingo. Mas a vida troca-nos as voltas e na madrugada de domingo recebo um telefonema da minha mãe para ir lá depressa que tinha “dado uma coisa” ao meu pai. O que me vem mais à memória é entrar em casa deles, a minha mãe a falar ao telefone a chorar, desligar a chamada, abraçar-me e dizer que nunca mais vou ter o meu paizinho! Grito-lhe que não pode ser, que eu ia-lhe contar nesse dia que ia ser avô, que queria que ele soubesse! E foi assim que no mesmo minuto em que a minha mãe soube que ficou viúva também soube que ia ser avó. Também senti muita injustiça! Porquê? Vida por vida! Não me fazia sentido! Era para ter sido um dia feliz mas tornou-se o dia mais triste da minha vida, até então. Tenho a certeza que onde quer que esteja é o nosso anjo da guarda, juntamente com a minha mãe que entretanto se juntou a ele… Esta época faz sobressair mais as saudades mas faço questão de manter sempre presente aos meus três filhos, as vidas dos avós… Do avô que nunca conheceram e da avó que teve a felicidade de os ver crescer um pouco. Nuca serão esquecidos! Estarão sempre presentes nos nossos corações!
    Adorei o conto de Natal e a mensagem que transmite! Obrigada!
    Um Santo e Feliz Natal!
    Beijinhos

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    1. Muito, muito obrigado pela partilha, Elvira. Acredite que me emocionou. Realmente, a vida é muito imprevisível. É muito injusto que o seu pai tenha falecido sem saber que ia ser avô. Isso não devia ter acontecido e lamento imenso que não tenha tido esse momento único na vida. Fico feliz por saber que tenta manter o espírito pelos seus filhos e que mantém a memória dos avós. É o melhor que pode fazer e tem a minha solidariedade.
      Desejo-lhe um FELIZ NATAL e tudo de bom para si.
      Muito obrigado por todo o carinho, é fantástico.
      Beijinhos,
      Bruno

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