by - 21 dezembro

 


        CONTO NATAL 2020

All I want for Christmas is youuu!
Sempre que ouço esta música pela primeira vez no início de dezembro, ou em finais de novembro como foi o caso deste ano, sei que chegou o Natal. É a música mais icónica desta época festiva e funciona como o sinal de partida para a época natalícia. É uma música adorada por praticamente todos, nem que seja pelas memórias que as pessoas associam a esta época sempre tão quente, tão cheia de amor, tão cheia de reuniões familiares, tão cheia de prendas e tão cheia de doces e iguarias deliciosas que aguardam onze meses para serem feitas e provadas novamente. 
Por muito que haja quem se farte desta música ao fim de um ou dois dias, a verdade é que aquela primeira vez, aquela primeira nota que aponta imediatamente para a grande Mariah Carey, rouba sempre um sorriso e um vislumbre feliz do que está para vir uma semana antes do final do ano.
Mas não a mim. Sempre que aquele primeiro sininho da música surge no rádio, ou na televisão, ou em alguma loja, o meu primeiro pensamento é sempre o mesmo:
Lá vamos nós outra vez. Já começou a pior época do ano.
E vocês perguntam-se que estapafúrdica razão posso eu ter para pensar isto, tendo em conta que sou tão nova, ainda uma rapariga de treze anos. Certamente que me diriam que devia ficar radiante por saber que ia receber muitas prendinhas e comer muitos doces até enjoar ou vomitar, como acontece a alguns amigos meus que não têm qualquer autocontrolo no que toca a doces. 
Eu percebo a vossa admiração. Juro que sim. Mas, para mim, é um hábito sentir um aperto no coração e uma tristeza profunda sempre que ouço a icónica música natalícia. É um dado adquirido. Eu nunca soube o que é um Natal em família. Um Natal assim quentinho, aconchegado, cheio de coisas boas para comer e conversar. 
Não.
Para mim, o Natal é sinónimo de tristeza, de sofrimento e de afastamento. Nunca percebi o porquê de as pessoas adorarem tanto o Natal, de ficarem felicíssimas quando estamos no último mês do ano. Adorava perceber. Adorava sentir isso. A sério que sim. No entanto, eu até preferia ter aulas nessa altura só para me abstrair do que se passa em minha casa. A partir do momento em que se ouve a dita música, ou quando se vê a primeira decoração natalícia, o meu pai fecha-se em copas, fecha-se sobre si mesmo e só volta a sair de lá após a passagem de ano. Fica irritadiço, zangado, não fala comigo e ausenta-se de casa muitas horas sem dizer para onde vai.
Desde que nasci que nunca passei um dia de Natal com o meu pai. Sou apenas eu, o meu irmão mais novo e a minha mãe. Mas sem o meu pai nem conseguimos celebrar como deve ser. A nossa casa é a única do bairro que não tem o mínimo enfeite de Natal. Até os Gonçalves do segundo esquerdo, cuja única “decoração” de Natal é colocarem um cartão a dizer «Feliz Natal» na sua porta, como se todos passassem por lá para o ver, tinham mais espírito natalício do que nós.
Honestamente, eu adoro decorações de Natal. Adoro como as ruas se iluminam, ficam cheias de luzes de várias cores, ficam mais acolhedoras perante o frio gelado que se sente sempre por estes dias. Um dos meus sonhos é ver a minha casa recheada de cor, de luz, de árvores de natal em miniatura, vários Pais Natal ao longo dos móveis, vários azevinhos, velas vermelhas e, claro, uma majestosa e pesadamente decorada árvore de natal, que seria um trabalho de equipa de nós os quatro. Juntos.
No entanto, o meu Natal é ver o meu pai rabugento, maldisposto, sempre longe de casa, a reclamar a cada anúncio ou música de Natal e, claro, sem haver qualquer espécie de decoração para entrar no espírito. No dia 25, o meu pai desaparece sempre antes de eu me levantar e só chega à noite, quando já estamos todos a dormir no sofá a ver televisão.
Claro que já perguntei à minha mãe várias vezes, principalmente quando era mesmo pequenina, por que razão não celebramos o Natal e por que razão o pai desaparece sempre nesta altura.
A minha mãe abraçava-me sempre que lhe fazia a pergunta. Depois, dava-me um beijo na cabeça e afagava-me o cabelo, antes de me responder condescendentemente:
– São coisas do teu pai e temos que respeitar, filha.
A partir dos nove anos deixei de perguntar e resignei-me a ter Natais cinzentos, sem o meu pai, sem tudo o que os outros tinham. Nunca lhe perguntei diretamente, receando uma explosão da parte dele. Às vezes até uma simples brincadeira do meu irmão levava-o a gritar com ele e acabava sempre por se ir embora uma hora ou duas ao café.
Mas agora, já mais crescida, sinto uma comichão que não me quer largar. Estou farta de ter Natais assim, sem alegria nenhuma, enquanto os meus amigos partilham fotografias e vídeos lindíssimos da família e da casa cheios de alegria e amor. 
Por isso, este ano, ao ouvir a primeira nota da música mais conhecida de Natal, decido fazer um desvio no meu caminho após o final deste dia de aulas. Apanho o autocarro e vou ter a casa dos meus avós paternos.
Sou recebida com alguma surpresa pelos meus queridos e fofos avós, que é logo posta de lado perante o agrado e felicidade com que eles me abraçam e me apaparicam. Não sei como é que os avós fazem, mas há sempre comida pronta a servir. Nem dois minutos passaram, já tenho uma sanduíche mista na mão, um iogurte e uma pequena árvore de natal de chocolate. Acho que as pessoas quando se tornam avós devem ganhar poderes mágicos para fazerem coisas com tanta facilidade e para saberem sempre o que precisamos para nos sentirmos bem. Vou adorar ser avó!
Depois de comer a sanduíche e o iogurte, guardei o chocolate para o caminho de volta e fiz a pergunta que me tinha levado ali.
– Porque é que o pai odeia o Natal?
A reação deles foi igual à da minha mãe: tenebrosa e receosa. A minha avó tenta sorrir e pergunta se eu quero outro iogurte ou algo para comer. Eu digo que já ia ouvir da minha mãe por comer tão perto do jantar; não quero mais problemas. Só quero saber o que está por trás de toda a tristeza e fúria que o meu pai sente para com o Natal. Só isso. Já chega de me esconderem o verdadeiro motivo. Não sou nenhuma criança. Sou uma adolescente e tenho o direito de saber. Acho que consigo lidar com o que quer que seja a resposta.
Eles ficam visivelmente aflitos, sem saber o que dizer. Olham um para o outro e parecem comunicar através do olhar, como decerto conseguem fazer com naturalidade. Após tantos anos de casados, conhecem-se tão bem que nem precisam de dizer o que pensam para se entenderem. O amor dos velhotes é lindo, há que admitir. Sentados assim, de mãos dadas, são mesmo um casal bonito. No entanto, vejo que, neste caso, não estão a chegar a um entendimento e passam para os sussurros, dos quais consigo captar algumas partes.
– Ela já é crescida…
– …pode não saber o que fazer…
– …merece saber, é do pai dela que…
– …estragar tudo?
– …temos de confiar que…
Mais uns sussurros são ditos sem que eu perceba e eles calam-se subitamente. Já tomaram uma decisão. Olham para mim com ternura e aceitam contar-me o que aconteceu.
O meu pai tinha uma irmã gémea, mas tinham a particularidade de fazerem anos em dias diferentes. Isto porque ele nasceu já no final da noite e a irmã foi pouco depois, mas já tinha passado da meia-noite. Eram muito chegados, tal como se espera que os gémeos sejam. Nunca se largavam e estavam sempre juntos. Sempre que chegava o inverno, passavam horas e horas a fazer uma atividade que ambos amavam e que até tinham bastante jeito: patinagem no gelo. Eles costumavam patinar juntos quase todos os dias da época natalícia, e chegaram a ser convidados por equipas federadas de patinagem artística no gelo. Mas eles nunca aceitaram. Achavam que a competição ia estragar aquilo que tinham, que era puro divertimento. Eles davam espetáculos sempre que se punham a patinar naquelas pistas de gelo que há nos centros comerciais. Quando os meus avós iam às compras de Natal, em que demoravam mais de uma hora e meia, bastava deixá-los na pista de gelo que o meu pai e a gémea nem davam pelo tempo passar. Patinavam, patinavam, patinavam. Os meus avós nem percebiam como é que eles não se fartavam daquilo. Mas a verdade é que nunca se fartaram. Uns anos depois, começaram a treinar rotinas para certas músicas e dançavam na pista de gelo, atraindo a atenção de imensa gente, que ficava ali só para os ver deslizar graciosamente ao som da música e sempre extremamente coordenados. Era algo lindo de se ver e os meus avós adoravam. Era o que dava cor ao Natal deles. Era a melhor tradição que tinham em família.
– Se o meu pai era assim, por que razão mudou tão drasticamente?
A minha avó continua o relato, dizendo que o último Natal feliz que eles tiveram foi quando o meu pai tinha mais ou menos a minha idade, treze ou catorze anos. Nesse inverno, foi feito um desafio de caráter amador a todas as pessoas: no fim de semana anterior ao Natal iria haver uma competição para o melhor dançarino no gelo. O meu pai e a irmã ficaram mais que radiantes com a notícia. Apesar de terem recusado os convites dos clubes, sempre tiveram curiosidade em saber o que realmente valiam na patinagem artística. Portanto, durante um mês eles treinaram e treinaram e treinaram. De tanto os ver, até a minha avó saberia executar a coreografia à primeira. Só faltava era saber patinar como eles sem ir de rabo ao gelo.
Então, na noite da competição, eles arrasaram e ganharam com notoriedade. Venceram a taça. Foi um momento lindo, magnífico. Eles estavam mesmo felizes. Os meus avós creem que foi o dia em que viram o meu pai mais feliz em toda a vida.
Nesta altura do relato, os rostos deles, que já estavam cheios de lágrimas pelas recordações bonitas do passado, ensombram-se quando prosseguem a história.
Depois de entregarem a taça ao meu pai e irmã, o júri pediu para que eles voltassem a dançar. Era um género de prémio adicional, poder mostrar o talento deles novamente para gáudio de todos. Claro que eles aceitaram a proposta e voltaram a executar toda a coreografia. No entanto, perto do final, havia um momento em que ela se apoiava no meu pai e ele ajudava-a a saltar, fazendo com que ela fizesse um pequeno voo, antes de aterrar e prosseguir a dança de forma harmoniosa e fluída como lhes era característico.
Eles executaram esse movimento como tantas outras vezes. No entanto, desta vez, ao pousar os pés no gelo, a gémea do meu pai não apoiou o pé bem e acabou por torcê-lo gravemente. Interromperam ali a dança e foram para o Hospital. O mais certo era ela ficar umas semanas a andar de muletas. Mas o problema não era esse. Tomara que fosse. O problema foi que, ao fazerem uma radiografia à perna para perceberem os danos causados pela queda, detetaram algo que foi confirmado com outros exames que ela fez a seguir: um osteossarcoma. Portanto, descobriram que ela tinha um tumor nos ossos. Um tumor maligno.
Fico sem palavras, embargada de emoção. A minha tia tinha a minha idade quando soube que tinha cancro. Deixo os meus avós rumarem até ao final da história, o rosto deles desfeito pela tristeza e mágoa.
Os tratamentos prolongaram-se durante um ano e, na altura do Natal seguinte, a gémea do meu pai estava com o sistema imunitário muito debilitado e acabou por contrair uma infeção hospitalar. Numa semana piorou drasticamente, faleceu e foi enterrada. E, como eu já estava a calcular, calhou na semana do Natal. A minha tia, que nunca conheci, foi enterrada três dias antes do Natal daquele ano.
Desde então, o meu pai nunca mais foi o mesmo no Natal. Nunca mais quis celebrá-lo e recusava-se a fazê-lo sem a irmã. Dizia que o Natal sem ela não era Natal. Não era nada. Os meus avós bem que tentaram convencê-lo do contrário, mas o meu pai nunca mais mostrou o mínimo interesse. Começou a desaparecer nessa altura e eles nunca sabiam para onde ia. O certo é que voltava são e salvo e eles nunca lhe faziam perguntas. Respeitavam a dor dele, que também era a deles, obviamente. Afinal de contas, os meus avós eram os pais dela e também sofreram uma perda que ninguém deve passar na vida. Mas eles aguentaram o forte pelo meu pai. Pelos vistos, ele não quis saber e nunca deu valor a esse esforço.
Os meus avós explicam que teria sido fácil para eles também enveredarem pelo caminho mais negro do luto. Mas não o fizeram pelo meu pai. Queriam que ele fosse feliz apesar do que lhes tinha acontecido. Só que ele não conseguiu sair desse caminho negro. Nunca o conseguira. Todos os Natais, era para lá que ele voltava.
Vou para casa a lamentar o azar do meu pai. Imagino o quanto deve ter doído perder a irmã desta forma, principalmente uma irmã gémea e com quem partilhava tanta coisa na vida. 
Falo disso com a minha mãe assim que chego a casa e ela amaldiçoa os sogros por se terem descosido, mas aceita conversar comigo sobre isso. A resposta dela, em jeito de conclusão da situação, é a mesma dos meus avós: que o meu pai volta sempre para esse caminho negro todos os Natais e nunca descobriram uma forma de o tirar de lá.
Ao que eu respondo, tendo uma ideia brilhante:
– O problema é que vocês nunca viram o problema dele da perspetiva certa.
– Como assim, filha?
– Vocês pensaram sempre em como o podiam tirar desse caminho negro em que ele se enfiou quando a irmã morreu, certo?
– Certo.
– Pois bem, a vossa abordagem está errada. Nós não temos de o tirar do caminho negro. Temos de o iluminar para que essa negrura desapareça.
A minha mãe fica calada e subitamente emocionada. Pergunta-me se tenho alguma ideia em mente. Sorrio. 
Claro que tenho.


Um mês depois, estamos a dois dias do Natal.
Apesar de trombudo e de ter recusado todas as nossas propostas até então para nos divertirmos, conseguimos convencer o meu pai a ir connosco ver um espetáculo único no Coliseu Comendador Rondão Almeida, em Elvas. É um espetáculo infantil que o meu irmão anseia ver há meses. Apesar de ter aceite, o meu pai diz que só vai porque não quer que a minha mãe tenha de conduzir quase quatro horas seguidas para Elvas. Ia dividir a viagem com ela, mas depois ficaria cá fora num bar qualquer enquanto eles assistiam ao espetáculo musical.
Não é bem isso que eu quero, mas já é alguma coisa.
A viagem decorreu em silêncio. O meu pai, sempre sério e carrancudo, nunca esteve para conversas. Quando estacionamos nas imediações do Coliseu de Elvas, depois de almoçarmos rapidamente num restaurante à entrada da cidade, o meu pai diz que vai ficar ali num bar próximo, ao que eu respondo que não me importo que ele faça isso, desde que nos leve aos nossos lugares. Nunca se sabe o que pode acontecer. Está ali tanta gente…
E é verdade. Estão imensas pessoas na rua, em redor do Coliseu, ansiosas para entrar. Mas eu tenho bilhetes VIP que nos possibilitam entrar antes de todos os outros. O meu pai acredita na minha conversa e lá nos acompanha ao interior do Coliseu, onde os funcionários do local recebem-nos com muita atenção e carinho.
Antes de entrarmos no recinto do Coliseu, um dos funcionários pede para ver a identificação do meu pai e fê-lo ficar para trás enquanto leva o seu tempo a ver o cartão de cidadão. Quando termina e o deixa prosseguir caminho, já nós desaparecemos de vista. O meu pai fica confuso, sem saber para onde ir. Um funcionário muito prestável aparece ao seu lado e pergunta se pode ajudar. O meu pai mostra os bilhetes falsos e o funcionário acompanha o meu pai até chegarem a uma porta que dá acesso ao recinto. Um pouco receoso, faz força no puxador da porta e esta abre-se. Entra no recinto e fica pasmado a olhar em frente, para nós.
O que o meu pai não sabe, porque desliga sempre na altura do Natal, é que o Coliseu de Elvas alberga, desde 2009, a maior pista de gelo do país no Natal. São oitocentos metros quadrados de gelo que encantam mais de vinte mil patinadores por ano. A razão para estar tanta gente no exterior e ninguém cá dentro, é porque a pista só abre a partir das dezasseis horas. Temos quinze minutos só para nós, resultado de um acordo feito com a direção do Coliseu após um e-mail que lhes enviei semanas antes a explicar a história do meu pai e o que tencionávamos fazer: salvar este Natal. Haverá melhor altura para fazer um milagre?
E é por isso que o meu pai, ao passar a porta, depara-se com a maior pista de gelo da Península Ibérica totalmente vazia. À entrada da pista estou eu, de mãos dadas com o meu irmão, a minha mãe e os meus avós, que vieram mais cedo para prepararem tudo sem levantar suspeitas ao meu pai.
O meu pai avança sem compreender. Pergunta-me o que se está a passar e eu aponto para um quadro colocado à entrada da pista de gelo, atrás de nós. No quadro constam várias imagens do meu pai a patinar com a sua irmã em miúdos. São imagens lindas, nostálgicas, que mostram o meu pai feliz como nunca o vi. No centro do quadro está escrita uma mensagem que a minha tia terá dito ao meu pai nos seus últimos dias de vida e que foi escutado pelo meu avô, que nunca a esqueceu:
«Só vivemos uma vez, maninho. Não a desperdices com coisas fúteis e inúteis e foca-te na família. A família é o melhor que temos. Aprendi isso da pior forma, agora que me vejo privada de vocês. Por favor, maninho, cria a tua família e faz dela o teu mundo todo. Porque tu foste o meu mundo e não podia ter sido mais feliz.»
Aproximo-me do meu pai com uma prenda embrulhada em papel vermelho com árvores de natal. O meu pai está com os olhos a brilhar e olha para mim, sem compreender nada do que se passa. Estendo-lhe o presente e ele pega nele com cuidado.
– Abre, pai.
O meu pai desembrulha o presente, avistando uma caixa de cartão. Abre a caixa e é então que vejo o meu pai chorar pela primeira vez, os olhos vermelhos e as narinas a dilatarem.
Do interior, retira duas botas para patinar no gelo. As mesmas que ele usava em miúdo, quando tinha a minha idade. Os meus avós dizem que ele não cresceu desde os catorze anos, pelos que ainda lhe deviam servir.
E servem.
De botas calçadas e de olhar incrédulo, o meu pai aproxima-se da pista de gelo que está toda iluminada com luzes brilhantes e bonitas. Entramos com ele e vejo que fica surpreendido por estarmos todos preparados para patinar. Com ele. Ao seu lado.
Ao fim de uns minutos aos círculos, decido dar-lhe a minha segunda prenda. Estendo a mão ao meu pai e ele recebe-a com hesitação. O resto da família afasta-se para nos dar espaço. Eu e o meu pai deslizamos de mãos dadas pelo gelo com calma e suavidade. Até que, de repente e sem aviso, uma música surge das colunas de som e preenche o espaço com a sua nostalgia natalícia.
É a música que até ao início deste Natal odiava ouvir, mas que agora faz o meu pai chorar por ter sido a música que ele e a irmã gémea utilizaram para dançarem na pista de gelo pela última vez. A coreografia deles começava com a minha tia a fazer uma pirueta seguida de um círculo em torno do meu pai. Largo a mão dele e executo os mesmos movimentos, como se o transportasse vinte anos no passado. Assim que termino esses movimentos e me junto a ele novamente, ele já percebeu a minha ideia e prossegue, comigo, a coreografia deles como se nunca a tivesse deixado de a treinar.
A verdade é que passei o último mês a treinar a coreografia deles através dos vídeos que os meus avós ainda tinham. E valeu a pena. A chorar como nunca o vi, o meu pai dança comigo ao som de Mariah Carey, ao mesmo tempo que as bancadas vão enchendo com as pessoas que vão patinar a seguir a nós. Eram centenas. E ficam a ver-nos dançar. No final, quando salto e continuo a dança sem nenhum percalço, para grande alívio do meu pai, as pessoas aplaudem de pé e gritam em uníssono com a música:
All I want for Christmas is youuu!
Abraço o meu pai no final e ele agarra-me com força, bem apertada no seu peito, levantando-me do chão. O abraço fica completo a seguir, quando a minha mãe, irmão e avós se juntam a nós. Ficamos abraçados enquanto as pessoas aplaudem, cientes de que está a acontecer um momento de família muito bonito, mas sem perceberem a profundidade do que se está a passar.
Começo a chorar e olho para o rosto molhado do meu pai, que está a dizer o quanto tem saudades da irmã e como lamenta o que nos fez sofrer todos estes Natais. 
Eu dou-lhe uma festinha no rosto e tento sorrir. Com aquela música ainda na minha cabeça, só penso numa coisa para lhe dizer.
– Por favor, nunca mais fujas de nós no Natal. Eu nem quero presentes nem nada disso. Quero apenas a tua presença. – Aponto para cima, a indicar a música. – Só te quero a ti para o Natal, pai. Mais nada.
Abraçamo-nos novamente com força. Nunca mais iria perder o meu pai na negrura do seu luto. Nunca mais. Iluminei-lhe o caminho para não se perder novamente.
Quando a pista começa a encher-se de patinadores entusiasmados e pouco equilibrados, passamos mais uma hora a patinar, a dar trambolhões e a rir muito uns dos outros. Como uma família normal. Nunca vi o meu pai tão feliz. Fico de coração cheio com o que vejo. Os meus avós, mais tarde, ainda emocionados, aproximam-se de mim e apertam-me com força.
– Obrigado por trazeres o teu pai de volta.
A partir desse ano, a tradição de patinarmos no gelo é retomada, para nunca mais ser quebrada. E foi assim que se deu mais um milagre de Natal.
Feliz Natal a todos!

Bruno M Franco

You May Also Like

6 comentários

  1. Muito bem caro escritor. Porque será que os relatos na primeira pessoa são sempre mais profundos? Eu prefiro escrever na terceira pessoa para me afastar mais da personagem ao mesmo tempo que a faço minha! Muitos parabéns. Feliz Natal!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Há sempre algo de especial quando se escreve na primeira pessoa, lá isso é verdade. E também tenho tendência para preferir escrever na terceira pessoa. Talvez porque a maioria dos livros que lemos são assim...
      Muito obrigado e Feliz Natal!

      Eliminar
  2. Muitos parabéns Bruno! Conto muito emotivo e com uma mensagem importantíssima para todos nós...Chorei de emoção.Feliz Natal e muito sucesso ;)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado! Fico muito contente que tenhas gostado. Feliz Natal e tudo de bom :)

      Eliminar
  3. Adorei Bruno e claro que também me vieram por várias vezes as lágrimas aos olhos. Muito bom conto de Natal. Parabéns!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito obrigado, tento sempre proporcionar-vos os melhores momentos de leitura que consigo e que me é possível. Feliz Natal!

      Eliminar