by - 03 março



"O IDOSO MISTERIOSO" - PARTE 4/4

- Vejo que tens algumas dúvidas a pairar sobre ti, meu filho. Parecem dúvidas existenciais. – Comentou o idoso, bebendo um copo de água. – Quando tinha a tua idade preferia uma cerveja bem gelada, mas a idade não perdoa. Lamento, mas aqui só há água para beber.
- Hmm, não tem importância. Estava com sede, a água serve perfeitamente para o calor que está.
- Pelo que percebi, andaste-me a seguir o dia todo. – Comentou o idoso, com um sorriso ternurento.
Senti-me subitamente como um filho apanhado a fazer asneira.
- Eu sei. Peço desculpa.
- Deduzo que não me queiras fazer mal, certo?
- O quê?!
- Há assassinos que costumam seguir as suas vítimas até as apanharem sozinhas para as poderem atacar à vontade.
- Anda a ler muitos policiais, só pode.
- Talvez. Gosto muito de policiais. Sabes porquê?
- Porquê?
- Porque mostram o quão efémera pode ser a vida. Além de outros factores muito importantes, mas que não são relevantes agora.
- É verdade, mas o senhor já viveu... er... bastantes anos. Que idade tem, se não for indiscrição?
- É indiscrição, mas eu não me importo. Tenho oitenta e cinco anos.
- Está a ver? A vida pode ser efémera, mas o senhor já viveu imenso. Espero honestamente chegar a essa idade com a sua saúde.
O idoso tinha o rosto cavado de rugas e uns papos enormes debaixo dos olhos. No entanto, era uma vista agradável, a imagem do avô ternurento.
- Ai sim? Eu já vivi, pelo menos, oitenta e cinco anos. Assumindo que não me vais assassinar hoje. – Acrescentou com um piscar malandro do olho. De seguida, apontou para a campa onde estivera a falar anteriormente. – Mas a minha esposa viveu apenas sessenta e três. Achas justo? Achas que vivi imenso, tendo em conta que os últimos vinte anos o fiz sem ter a mulher da minha vida comigo?
Engoli em seco. Não estava à espera daquela resposta. Devia ter verificado a data do falecimento antes de lançar aquele comentário. Apercebendo-se da minha atrapalhação, o idoso continuou a falar, desta feita sem qualquer vestígio do sorriso que o caracterizava.
- Que me interessa estar cheio de saúde, se nos últimos vinte anos vivi sozinho? Vinte anos a acordar sozinho numa cama gigante, a deambular pelos corredores de casa sozinho, a passear sozinho, a ler sozinho. Achas que viver até à minha idade com saúde é suficiente para estar feliz?
Deixei cair os ombros e o meu semblante ficou bastante cabisbaixo. Recordei-me, subitamente, do que me levou a seguir o idoso.
- Mas o senhor parece sempre tão feliz. Posso ser dos poucos que se apercebe disso, mas a forma como o senhor está na vida é de um homem feliz, em paz. Fiquei intrigado consigo e decidi segui-lo hoje porque achei que iria perceber a razão pela qual o senhor emana tanta felicidade, paz e harmonia com o seu sorriso, com o seu olhar, com os seus gestos.
O idoso sorriu e encarou novamente a campa da falecida esposa. Inspirou fundo de uma forma sonhadora.
- Eu sei que muitos dos pais me olham com alguma desconfiança por causa das crianças. Acham que eu sou um pervertido.
- Não ach...
- Shh. – Levantou uma mão para me calar. – Eu sei o que dizem. Escusas de os desculpar para me fazeres sentir melhor. Eu sei. Mas tem tudo um motivo. Sabes qual?
Eu encolhi os ombros, na expectativa. O idoso percebeu que eu não ia responder e continuou o discurso.
- A principal razão pela qual eu sou tão feliz deve-se ao facto de eu ter tido a sorte de ter encontrado a mulher da minha vida. Encontrei-a, o que por si só não é nada fácil, e fui imensamente feliz. Fui mesmo feliz com a minha mulher. – O seu olhar brilhou de emoção com as inúmeras recordações. – A minha mulher era a minha alma gémea, se acreditares nessas coisas. Era mesmo. Eu acredito nisso porque ela era a prova de que as almas gémeas existem. Fomos casados quarenta anos e vivi tudo o que podia desejar ter vivido com ela. Viajámos imenso, partilhámos momentos únicos, muita intimidade, confiança e amor e criámos uma família lindíssima que nunca nos trouxe problemas de maior, apenas felicidade. Aquele banco onde costumo estar sentado no final do dia era o banco onde eu e a minha esposa ficávamos a ler e a dar comida aos pombos nos últimos meses de vida dela. Foi onde tivemos as conversas mais profundas e reflectidas da nossa vida. Aquele café onde tomaste hoje o pequeno-almoço era o café onde eu e a minha esposa comíamos sempre de manhã nos últimos anos da vida dela. Todo este bairro foi vivido por nós. Agora, cabe-me a mim viver este espaço que ainda não tínhamos vivido juntos. – Esboçou um gesto que abarcava todo o cemitério. – Para mim, ela ainda está viva. Está viva em mim, nas minhas lembranças. Todos os dias venho aqui conversar com ela. Sei que parece parvo, mas eu não preciso dela aqui para conversar com ela. – Apontou para a sua cabeça – Ela está aqui. Eu sei o que ela diria, sei que gesto faria, que emoção espelharia o seu rosto. Sei isso tudo porque a conheci profundamente bem. Basta-me imaginar que ela está comigo e é como se voltasse atrás no tempo. É como se ela nunca tivesse morrido. Às vezes juro que consigo ouvir a sua gargalhada…
Não contive as lágrimas e desabei ali mesmo, sentado na toalha do idoso.
- Quando se atinge um grau de felicidade e de cumplicidade tão grandes e profundos como eu e a minha esposa, é-se feliz para o resto da vida, ainda que fisicamente estejamos sozinhos. É esse o motivo pelo qual eu te pareço tão em paz, meu filho. É por saber que tive a sorte de viver a felicidade mais pura do mundo e que a manterei até morrer e me juntar a ela novamente. Posso parecer só, mas não estou. Estou sempre com ela. E isso faz com que não pare de sorrir e de apreciar a vida como ela é. Talvez devesses fazer o mesmo e parar de vez em quando. Parar e apreciar a vida, sem quezílias insignificantes, sem nada dessas tretas. Vais ver que serás muito mais feliz.
Ainda a deitar algumas lágrimas, abracei aquele senhor. O idoso que podia ser meu avô. Comemos animadamente, falámos imenso sobre as nossas vidas. Quando dei por ela, já estava na hora do idoso ir para o parque.
- Está na hora de irmos para o parque ler um pouco. Hoje vamos a Nova Iorque perseguir um assassino em série. Acho que é hoje que o apanhamos.
Percebi que não falava de mim, por isso limitei-me a ajudá-lo a arrumar as coisas e voltei para casa pensativo. Avaliei a minha própria vida sob esta nova luz que o idoso lançara sobre mim. Cheguei a casa à hora que era suposto num dia de trabalho normal e beijei a minha mulher com paixão e peguei a minha filha ao colo, enchendo-a imediatamente de beijinhos. Fomos ao parque novamente. Sentia uma paz interior como nunca senti. Ao observar as minhas duas mulheres a brincarem de forma tão cúmplice e divertida, compreendi o que o idoso me dissera.
No dia a seguir, quando ele viesse do cemitério, iria encontrar um livro no seu lugar. No interior iria estar uma nota que dizia: espero que também gostem de perseguir assassinos na Europa. Nesse momento, o idoso iria lançar-me um olhar surpreso, mas divertido e, até, um pouco emocionado. Eu iria retribuir com um aceno e voltaria a atenção para a minha família.
A mensagem do idoso não podia ser mais clara. Temos de aproveitar a vida que temos, aquilo que temos e que construímos, porque é o melhor que levamos desta vida. São os momentos com as pessoas que mais gostamos. A vida é curta demais para guerras insignificantes, para chatices sobre coisas que não valham a pena.
Ao aproximar-me delas para participar na brincadeira, que passara a ser o jogo da apanhada, senti uma felicidade tremenda e uma paz fascinante por saber que estava onde era suposto estar e com quem devia estar. Não há maior felicidade no mundo do que nos sentirmos apaixonados e no rumo certo.
O idoso continuou a olhar para nós com o seu sorriso pacífico.
Mas, a partir daquele dia, já não era o único.

FIM

You May Also Like

2 comentários