by - 01 março



"O IDOSO MISTERIOSO" - PARTE 2/4

A reacção da minha mulher surpreendeu-me perante a minha pergunta sobre o que ela achava do idoso que se sentava todos os dias no banco de jardim a olhar para o parque.
- O quê, aquele velho que passa o tempo a olhar para nós? Não sei o que se passa na vida dele, mas não gosto nada da maneira como ele sorri a olhar para as crianças. Se algum dia ele tenta meter conversa com a nossa filhota…
Estão a imaginar o resto da conversa, certo? Nessa noite, não dormi muito bem.
Sentia-me com pena do idoso. Ninguém via nele o que eu via. Pelos vistos, a maioria achava que o idoso era um velho rebarbado e que adorava passar o tempo livre a olhar para crianças. Mas não era isso que eu via. Estaria a ser ingénuo? Estaria a ver o que queria ver? Para mim era inconcebível imaginar um velho como um predador sexual. Estaria eu em negação?
Achava que não. Não podia estar. Eu observei-o todos os dias nas últimas semanas. Era impossível aquele idoso ter um pingo de maldade. Aquele olhar, aquele sorriso… Era de pura felicidade. Mas como, se pelos vistos era viúvo e não tinha ninguém que o visitasse regularmente? Era, até, hábito do idoso isolar-se ficando a ler no banco (espero ter a visão dele se atingir a sua idade) ou a dar de comer aos pombos.
Parecia uma alma pura. Nunca pensei que fosse pensar isto de outro homem. Ainda que um homem que pudesse ser quase meu avô.
Mais uns dias se passaram e a situação mantivera-se. Eu ficava a observar o idoso e a sentir-me maravilhado com o estado de paz de espírito que emanava dele. Fazia-me sentir estranhamente bem olhar para ele. Era como ver um pôr-do-sol, em que nos sentimos em paz com o mundo, em que sentimos que tudo é possível e que percebemos que a vida pode ser maravilhosa.
Decidi que iria averiguar a situação de uma vez por todas. Tinha de perceber quem era o idoso. Estava cansado do olhar de desaprovação da minha mulher e de alguns pais perante ele.
Pode parecer paranóico, mas resolvi tirar um dia de folga. A minha esposa saía de casa sempre uma hora antes de mim, pelo que deixei-a ir, cabendo-me a mim levar a nossa filha para a creche onde ficava até meio da tarde, quando a minha mulher a ia buscar e esperavam por mim para irmos ao parque ou simplesmente passear.
Liguei para o meu escritório a dizer que estava doente e pedi ao chefe para usar horas de bolsa que eu tinha acumulado para colmatar a minha ausência naquele dia. É verdade. Estava disposto a gastar horas de bolsa, que tinha ganho com trabalho extra e que podia usar para passar mais tempo com a minha família, para conhecer o idoso. Era esse grau de seriedade que eu tinha perante aquela questão.
A urgência era imensa.
Estava muito calor naquele dia de Verão tipicamente português. Depois de deixar a minha filha no colégio, com muitos abraços e beijinhos, decidi passar pelo café que o meu vizinho referiu.
A pé, aproximei-me do estabelecimento e verifiquei que, numa mesa de plástico colocada cá fora, a servir de esplanada com outras mesas, encontrava-se o idoso, de boina bege, camisa larga e fresca e uns calções confortáveis como se queria naquelas idades.
Lá estava aquela áurea que tanta confusão me fazia. Era um mistério.
Entrei no café e pedi o mesmo que o idoso estava a comer. Um galão com uma torrada e um pastel de nata. Comi no interior, observando a forma calma, tranquilíssima, com que ele desfrutava da refeição. Era enternecedor ver como a azáfama e a correria a que a vida nos acostumara contrastava tanto com a calma com que o idoso fazia as coisas. Era como se tivesse todo o tempo do mundo. Nós não temos essa calma. Ao ritmo a que a vida corre, nunca temos tempo para simplesmente parar um pouco e desfrutar da vida pelo que ela é. Decidi fazer o mesmo. O meu telemóvel chamava por mim, com várias notificações de e-mails e das redes sociais.
Inspirado pelo idoso, desliguei o telemóvel. Claro que era pouco prudente ficar incontactável, tendo em conta que tinha uma filha de dois anos, mas eu sabia que, naquele dia, nada de mal podia acontecer. Não quando estava a observar um homem que irradiava tanta paz.
Terminado o pequeno-almoço, meia hora depois, o idoso deixou várias moedas na mesa, bem acima do custo dos produtos que consumiu, e começou a andar, apoiado numa bengala de madeira escura. Senti-me culpado por apenas deixar o dinheiro exacto da conta e meti mais um euro em homenagem ao idoso.
Durante duas horas, o idoso caminhou pelo bairro, parando de vez em quando para admirar uma montra de alguma loja de roupa ou de tecnologia, ou para cumprimentar algumas pessoas com um sorriso contagiante. O ritmo era, como já esperava, bastante lento. Quando, no final da manhã, o idoso entrou num prédio percebi que tinha chegado a casa. Era uma zona do bairro que nunca visitara antes. Sentei-me numa paragem de autocarro que se encontrava a vinte metros, contando que isso me ajudasse a esconder. Nenhum autocarro passou, felizmente, na meia hora que demorou ao idoso para voltar a aparecer.
Aquele era um bairro bastante amigável. Reparei, pela primeira vez, como as pessoas eram simpáticas umas com as outras e como havia tanta vida naquelas ruas. Havia bem mais jovens do que eu supunha. Morava num sítio bem mais bonito e acolhedor do que pensava, e só me apercebi disso porque parei por momentos para observar e sentir o ambiente em meu redor.
Quando o idoso apareceu, vinha com uma lancheira. Seria o almoço? O que iria ele fazer agora?
Retomei a minha lenta perseguição, obrigando-me sempre a abrandar o passo porque, quando me distraía a observar o que estava em meu redor, encurtava logo para metade a distância ao idoso. Só então descobri que tínhamos um salão de jogos, um cabeleireiro para crianças, uma lavandaria self-service e um pequeno campo de futebol. Fiquei estupefacto com o pouco que conhecia do meu bairro.
Ao fim de meia hora, já transpirado pelo calor e cheio de sede, percebi para onde nos dirigíamos.
O idoso ia para o cemitério.


Continua...

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2 comentários

  1. Não sabemos ainda onde isto vai dar, mas para mim, este idoso vive das recordações que tem e vive feliz. Todos deveriamos ser assim! A ver vamos...

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