by - 30 novembro



- Busca, Porthos!
      A voz aguda da rapariga que entrara recentemente na fase dos teenagers alongou-se pelo pátio e teve o efeito pretendido. Um grande e bonito husky siberiano, com o pêlo preto no dorso e o focinho branco, correu atrás da bola de ténis que a rapariga tinha atirado com todo o entusiasmo.
Estavam naquilo há mais de meia hora e não havia sinal de qualquer dos intervenientes se estar a fartar. Longe disso. A rapariga adorava o seu cão, baptizado com o nome de Porthos em homenagem a um dos mosqueteiros de Alexandre Dumas, o favorito do seu pai por ser o mais divertido da história, na sua perspectiva. O grande e musculado husky regressou a trotear para junto da rapariga com a bola de ténis na sua boca. A rapariga, uma jovem de treze anos magra e de cabelos longos acastanhados, agachou-se e retirou a bola da boca do husky com toda a naturalidade de quem fazia aquilo com extrema frequência. Afagou o pêlo do animal com carinho e recebeu umas lambidelas bem molhadas na face em troca.
- Quem é um menino bonito? Quem é? Quem é?
Empolgado, Porthos ladrou enquanto se empoleirava sobre a rapariga e a mandava ao chão, continuando a lamber a sua face. A rapariga explodiu em gargalhadas pelas cócegas das lambidelas do husky e abraçou-o, sem nunca deixar de lhe dar festinhas ternurentas. Ao fim de uns momentos, já com o rosto molhado, a rapariga conseguiu atirar a bola novamente para o fundo do pátio.
Porthos, subitamente atento à trajectória da bola, parou as lambidelas e perseguiu o objecto que ele mais adorava apanhar. A rapariga levantou-se e limpou a sua face às mangas da fina camisola.
Quando o cão regressava com a cauda a abanar, orgulhoso por ter cumprido a sua missão, a porta das traseiras daquela moradia abriu-se e uma senhora apareceu no umbral.
- Filha, vamos. Está na hora!
A rapariga virou-se para a sua mãe e colocou a mão sobre os olhos para os proteger do Sol ascendente daquela manhã de Verão.
- Já vou, mãe.
- Sim, mas vem mesmo. Não me faças vir cá outra vez.
- Vou-me só despedir do Porthos.
A mãe fechou a porta e a rapariga agachou-se novamente. Tirou a bola da boca do husky mas, desta vez, deixou-a tombar para o chão. A brincadeira havia terminado.
- Por agora, não podemos brincar mais, Porthos. – O cão parecia querer escutá-la, rodando a cabeça. – Mas mais logo voltamos a brincar. – O cão ladrou uma vez. – Prometo, a sério!
Deu um abraço ao cão e este foi cheirar a relva, afastando-se. A rapariga, com uma enorme tristeza por deixar o seu grande amigo para trás, foi ter com os pais à frente da moradia. Já a esperavam no carro. Ela fechou a porta e foi ter com eles.
- Então sempre vamos lá?
- Oh yeah! Vamos sim! – Respondeu o pai, sentado no banco do pendura, claramente entusiasmado. – É desta que vou levar a minha filha a ver uma das tradições mais emblemáticas aqui da nossa terra.
A rapariga olhou para a mãe, que abanou a cabeça e iniciou a marcha do carro.
- Eu acho que ainda é cedo para ela, mas…
- Já falámos sobre isto, querida. Há lá crianças bem mais pequenas que a nossa filhota e que adoram aquilo.
- Está bem, eu sei, mas não sei se ela vai gostar.
O pai olhou para a rapariga com um sorriso enorme. Estava notoriamente feliz por levar a filha consigo a participar em algo que lhe dizia muito.
- Vais adorar. Tenho a certeza, filha.
- Sim, pai. Espero que sim!
A mãe revirou os olhos e inspirou fundo. Era notória a diferença de opiniões sobre o espectáculo que iam assistir e participar. Era uma tradição muito antiga que o seu pai, oriundo da região em questão, participava desde sempre e queria, agora, que a sua filha conhecesse essa faceta tão importante para si.
A rapariga olhou em frente e viu uma placa que indicava vários destinos possíveis, e o deles estava lá no meio.
Alcochete.
        Iam assistir a um espectáculo tauromáquico.
Neste caso, a uma tauromaquia popular: a Festa do Barrete Verde de Alcochete.
Estacionaram o carro à entrada do centro da vila e caminharam a pé. Passaram por uma grade que avisava da largada de touros e a rapariga ficou surpreendida por ver as ruas cheias de terra, em vez do habitual alcatrão ou pedra.
- Porque é que a estrada está cheia de terra, pai?
- Então, é para os touros andarem mais à vontade.
A rapariga ficou surpreendida.
- Vamos ver os touros aqui na rua?
- Sim, como é óbvio.
- Mas eles não nos fazem mal?
- Fazem se não tivermos cuidado. – Apontou para umas estruturas de madeira, pintadas de vermelho que se encontravam espalhadas pela rua, normalmente próximos das portas das casas. – Aquelas trincheiras servem para nos abrigarmos. Além de que também há grades pela rua para as pessoas verem à vontade. Não há perigo, garanto-te.
O movimento era já elevado. Estava a chegar a hora da largada dos touros.
- Vamos para aqui.
Abrigaram-se atrás de uma grade de madeira que limitava a acção do touro e protegia quem viesse de ruas adjacentes. Várias pessoas circulavam despreocupadamente nas ruas, como se um touro de algumas centenas de quilos não estivesse prestes a ser solto. A rapariga sentia-se embasbacada com o que via. Seriam as pessoas malucas? Não tinham amor à vida? Não, isso não devia ser. Até estavam todas animadas. Muitos homens e mulheres andavam de cerveja na mão e riam-se imenso. Tiravam fotos e conversavam alegremente.
Definitivamente, não pareciam não ter amor à vida. Estavam, pelo contrário, cheios dela. A rapariga sorriu perante o convívio das pessoas. Gostava do que estava a ver.
Subitamente, um estouro semelhante a um tiro assustou a rapariga. Agarrou-se ao pai, com medo. O seu grito estridente não passou despercebido às pessoas que também aguardavam pelo touro. Sorriram perante a reacção da rapariga.
- Filhota, não tenhas receio. Este é o sinal de que o touro já está na rua.
Afagou-lhe a cabeça e a rapariga sentiu-se melhor. Ao ver que o entusiasmo e o tom da conversa das pessoas subiram consideravelmente, constatou que o pai tinha razão.
E quando soaram vários gritos de entusiasmo e surgiram muitas máquinas fotográficas e telemóveis na mãos das pessoas a filmarem a rua, percebeu que o touro tinha chegado. Uns segundos mais tarde, uma enorme criatura surgiu no meio da rua. Um touro preto, com cornos bicudos e bem afiados, trauteava atrás de algumas pessoas que passavam à sua frente a correr, levando a que o animal estivesse constantemente a mudar o foco da sua atenção. Sem decidir quem perseguir, estacou no meio da rua, próximo da rapariga.
Ela olhou para ele com atenção, o animal claramente à procura de um alvo para perseguir. Ou queria apenas ir-se embora?
A rapariga começou a olhar para ele e associou-o ao seu Porthos, o seu husky lindíssimo e brincalhão. As pessoas passavam à frente do touro e mandavam bocas, troçando do pobre animal.
- Pai, porque é que as pessoas estão a dizer aquelas coisas ao touro?
O pai desviou o olhar sorridente do espectáculo e encarou a filha.
- Eles estão só a brincar com o touro, filha. Tal como tu brincas com o Porthos quando atiras a bola ou lhes fazes cócegas. A diferença é na forma como se brinca.
- Se fores fazer cócegas a um touro pode não correr bem. – Acrescentou a mãe, claramente contrariada por estar ali a sua filha.
- O que é que pode acontecer, mãe?
- Olha, filha, o touro pode muito bem espetar…
- O touro pode empurrar as pessoas para o chão, filha. – Cortou o pai, aborrecido com a esposa. – Com força. Pode aleijar.
A rapariga voltou a sua atenção para a rua. O touro corria atrás de um homem com vigor, mas este fora mais rápido e conseguiu esconder-se atrás de uma trincheira que tinha o desenho de um barrete verde.
- Foi por pouco!
Mais à frente, uma pequena árvore servia de apoio a um homem com uma barba grisalha que gritava para o animal. Era um homem mais velho, claramente confiante naquela situação. Não era a sua primeira largada, isso era certo. O homem barbudo continuou a chamar a atenção, até que o touro se foi aproximando. O homem afastou-se da árvore e aproximou-se do animal, provocando-o. As pessoas em redor riam-se e algumas passavam perto do touro a correr, com o casaco nas mãos a ser agitado com vigor para puxar por ele.
E conseguiram.
Com um arranque em força, o touro investiu contra o homem barbudo, que começou a correr de regresso à árvore.
A rapariga engoliu ar, assustada. Colocou a mão na sua boca, com medo que o touro conseguisse empurrar o homem com força e o magoasse. Apertou a mão do pai com aflição quando o impacto era o mais certo.
O tempo parecera parar para a rapariga.

Continua…

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