by - 01 dezembro



O touro estava a centímetros de atingir o homem barbudo. Mas ele era muito ágil para a sua idade. A prova disso é que conseguiu escalar a árvore com rapidez, até uma altura suficiente para ficar acima do alcance do touro. Ouviram-se gritos e assobios de aprovação e louvor pela actuação do homem. Pendurado na árvore, com o touro por baixo a focar a sua atenção noutras pessoas que passavam com os seus casacos abertos nas mãos, o homem esticou a sua perna e pisou o dorso do animal, que se agitou no seu lugar. A provocação verbal do homem não escapou à rapariga.
- Porque é que ele está a tratar mal o touro? Pensei que estavam a brincar.
Novo pontapé no animal e a rapariga abriu muito a boca, revoltada.
- Pai!
- Filha, o touro tem um corpo muito rijo. Ele não sente praticamente nada. Parece-te que o touro se aleijou? A mim parece-me tranquilo.
Não parecia aleijado, mas parecia mais enfurecido, ao ponto de arrancar com fúria rumo a outros alvos. O que surpreendeu a rapariga, no meio disto tudo, era o à-vontade com que as pessoas circulavam pelas ruas, umas a andar calmamente apenas para apreciar de perto o espectáculo, outras para provocar o animal de forma a que ele os perseguisse. Como é que andavam assim de forma tão descontraída com um animal tão assustador e forte a meros metros de distância?
- É um abuso estarem a gozar desta forma com um animal. – Comentou a mãe da rapariga, farta do espectáculo. – Ele fez-vos algum mal para o maltratarem esta forma?
Olhou para o pai, chateado por ter aquela conversa num momento tão entusiasmante da largada.
- Faz parte da nossa cultura, da nossa tradição, querida. E sabes bem que os touros são tratados com todo o cuidado.
- É desumano usar animais desta forma, para nosso entretenimento. Ainda por cima quando o espectáculo é feito à custa do sofrimento do animal. Isto é uma tradição muito antiga? Também o de arranjar casamentos. E actualmente, como é? Nada a ver. As coisas evoluíram; por que razão não evoluiu também esta tradição? Supostamente uma tradição deve ser para dignificar o Homem e um povo, mas como é que fazer isto a um animal nos dignifica?
- Querida, sabes uma coisa? Nos anos em que o touro está a ser preparado para estes momentos, ele tem uma óptima qualidade de vida, até melhor que as vacas ou as galinhas. Essas, coitadas, vivem em currais apertadíssimos e muitas nascem e morrem sem ver o Sol. E não me parece que tenhas problemas em comer carne de vaca e de galinha.
- Ah e vais-me dizer que nessa preparação dos touros não sujeitam os animais a testes violentos?
- Não sou nenhum especialista, como sabes, mas creio que isso não é verdade. E se não houvessem touradas, estes touros provavelmente nem existiriam. Seria uma espécie extinta. É isso que queres?
- Se for para viverem sempre a sofrer desta forma, talvez fosse melhor.
- Se a tourada fosse algo assim tão maquiavélico, por que razão as arenas estão sempre cheias? Por que razão há sempre turistas nestes espectáculos? Além de que a televisão pública transmite as touradas, portanto não creio que tenhas razão. – Olhou para a filha e sorriu. – E para provar que não tem mal nenhum…
Dito isto, o pai saltou a grade e foi para o meio da rua, deixando a esposa enfadada pela discussão e a filha em choque pela ousadia do pai.
O touro estava a correr atrás de algumas pessoas, que fugiam com um sorriso na cara. O pai bateu palmas e chamou o touro para si. Quando o animal estava a fazer uma curva atrás de outra pessoa, passou perto do pai da rapariga. Ela ficou assustada no momento em que o touro desviou os seus chifres na direcção do pai.
- Pai!
Mas o pai também tinha alguma experiência e afastou-se com ligeireza. Escapou ileso, embora não tenha arriscado tanto como outros que a rapariga vira.
O pai regressou incólume, para alívio da rapariga e para desprezo da esposa, que continuava rabugenta com toda a situação.
Umas horas depois, após um almoço agradável no meio de imensas pessoas que deixaram a rapariga com um sentimento de pertença muito grande naquela festa, foram para a Praça de Touros de Alcochete. A rapariga ficou imediatamente deslumbrada com a forma como as pessoas encheram as bancadas para o espectáculo. Era realmente notável. O povo gostava mesmo daquilo, embora a sua mãe não apreciasse nem um pouco.
A rapariga sentia-se um pouco dividida. Os seus pais tinham opiniões bastante opostas mas, ainda assim, válidas da perspectiva de cada um. Para a rapariga, o envolvimento da população, todo o convívio e a alegria das pessoas era algo realmente bonito e contagiante, ao ponto de ela se sentir ansiosa para que o touro aparecesse na arena só para sentir o entusiasmo a vibrar no ar. Por outro lado, pensar na forma como o animal sofria e era gozado por todos, acabava por ser desumano e muito pouco digno da parte dos seres humanos.
Todo o espectáculo desenrolou-se com agrado, com vários homens, chamados de forcados, a arriscarem a sua integridade física enfrentando o touro com alguns malabarismos que fizeram a rapariga bater palmas fervorosamente, para agrado do seu pai. Ela ficou mesmo impressionada com a primeira actuação.
Então, chegara a hora dos cavaleiros. Um cavalo entrou na arena, com um homem a cavalgar muito bem vestido. Mas o que chamou a atenção da rapariga foi o que ele tinha na mão. Tinha uma estaca comprida. E a sua função era bem clara.
- Pai, o que vai acontecer agora?
O pai engoliu em seco, sabendo que desta vez seria difícil de defender a sua perspectiva da tourada. Mas foi a esposa quem falou primeiro.
- Vão espetar aquelas coisas pontiagudas no touro até que no final...
- Querida! – Admoestou o pai, chocado.
- O que tem o final, mãe?
Mas ela percebeu tudo. Não precisava que a mãe completasse a frase.
Acto contínuo, o cavaleiro evitou a investida do touro graças a uma destreza bastante impressionante do seu cavalo. Ao passar ao lado do touro, o cavaleiro ergueu a espiga e espetou-a no dorso do animal, levando-o a dar um coice como reacção.
A rapariga arregalou os olhos. Assustada, levantou-se e saiu das bancadas. Começou a descer as escadas e a andar de forma atabalhoada, sem rumo. Não via para onde ia, a sua cabeça a repetir aquela imagem em repetição vezes sem conta. Quando imaginou que se tratava de Porthos, começou a chorar. Sem dar por isso, passou por várias pessoas que pareciam atarefadas com a organização e não lhe prestaram atenção nenhuma. Ela era muito pequena e passava despercebida.
A rapariga não cabia em si de espanto. Eles iam matar o touro no fim. Iam matar o animal! Como podiam fazer isso? Coitado do animal.
Desorientada, só parou quando embateu numa porta de madeira. Cheirava a fezes e a feno com intensidade. Não havia ninguém por perto. A rapariga pegou no trinco da porta e abriu um pouco, curiosa como só as crianças sabem ser.
Vários touros circulavam pelo pequeno espaço. Pareciam tristonhos para a rapariga, ali encurralados à espera de irem para a arena.
- É injusto o que fazem convosco, amigos. Vocês não merecem esta vida. Merecem liberdade e merecem ser felizes.
Sem pensar, a rapariga abriu a portinhola e escondeu-se atrás dela, deixando a saída escancarada. Aos poucos, os touros saíram do seu espaço e fugiram, para agrado da rapariga. Sentia que tinha feito uma óptima acção pelos animais.
Momentos depois, começou o terror.
Várias pessoas começaram a gritar e a rapariga ficou aterrorizada e muito confusa. Alguns gritos eram mesmo horripilantes, como se estivessem em sofrimento. O que estaria a acontecer? A menos que...
A rapariga desatou a chorar, sentando-se no chão. Não acreditava no que estava a acontecer e, na verdade, nem conseguia compreender na totalidade.
Horas mais tarde, abraçada pelos pais que a tentavam reconfortar do trauma, souberam que cinco pessoas ficaram feridas e que duas estavam em estado crítico.
E a culpa era sua. De mais ninguém. Dela apenas.
Ingenuamente, não contara que os touros agissem daquela forma depois de serem libertados. Estavam livres. A rapariga assumiu que fossem correr para o campo e se afastassem das pessoas, rumo à liberdade. Mas não. Agiram contra elas, como se ainda estivessem presos.
- Porque é que os touros fizeram mal às pessoas? Eu só os libertei para eles irem à sua vida, não queria que aleijassem ninguém.
- A culpa é da forma como são tratados. – Atirou a mãe, abalada pelo estado em que a filha ficara. Todos sabiam que nunca mais a iriam calar a respeito das touradas.
- Também tem que ver com a sua natureza. – Acrescentou o pai, abatido por um dia tão especial como aquele ter terminado daquela forma. – Por isso é que eles são tão bem controlados pelos criadores. Tem que haver um balanço. É como os leões. São muito giros e tudo isso, mas experimentem libertá-los numa cidade para ver o que acontece. É a mesma coisa. É preciso balanço, para que os animais possam entreter as pessoas mantendo a sua natureza, mas que sejam controlados saudavelmente de forma a não causar estragos como os de hoje e, claro, para que sejam animais felizes.
Um balanço. Era isso que a rapariga gostava que houvesse.
Por ela, até podiam haver touradas e largadas de touros. Ela adorara a experiência. Mas só o queria se os touros fossem realmente bem tratados.
O que a rapariga iria descobrir anos mais tarde, quando enfrentasse a vida sozinha, era que neste mundo poucas coisas eram perfeitas ou ideais.
E iria concluir que era por esse motivo que o mundo não era perfeito. Cabia a cada pessoa lutar pela sua definição de perfeição e, se não desse a nível global, que o fosse no seu próprio mundo. Na sua própria vida. Cada ser humano tem a missão de lutar pela sua felicidade.
O problema era quando a felicidade de uns embatia na de outros.
Aí é que começavam os problemas.


FIM.

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